quarta-feira, outubro 29

Considerações de Frei Betto sobre o caráter neoliberal do Governo LULA


Frei Betto, por dois anos trabalhou no Programa Fome Zero no governo Lula. Hoje considera que o Programa foi desfigurado e faz duras críticas ao caráter neoliberal do governo Lula. 

Em entrevista a Rede Eco Alternativo, 19-06-2007 (passaram-se já anos, porém continua sendo de grande importância na conjuntura da atual política brasileira), Betto fala ainda da sua relação com Cuba e o que pensa de Fidel Castro. Vai além, ao expressar o Brasil, expondo, "Eu costumo dizer que Deus quis inventar o Éden, o paraíso perdido no Brasil, por isso não nos deu nenhuma catástrofe natural. Nossa única catástrofe é a política, a classe política que temos".

Trechos de sua entrevista. 
Mais do que o livro [Fidel e a Religião], você tem mantido um diálogo com Fidel durante todos estes anos. Assim...,

Que impressão tem sobre Fidel, sobre a sua personalidade e o seu papel na história?
Muitas pessoas com a enfermidade de Fidel perguntam como será Cuba pós-Fidel. Minha reflexão é justamente ao contrário. Pergunto-me por Cuba pré-Fidel. Fidel é um exemplo de homem novo, de revolucionário, de uma pessoa que dedicou a sua vida à libertação de um povo e de outros povos também, por toda a sua solidariedade com os países pobres do mundo. Então quando falo de Cuba pré-Fidel, é porque meu sonho é que todos os cubanos e todos nós, revolucionários, militantes de esquerda, consigamos um dia ser como Fidel. No sentido de que Cuba realiza uma transição, porque 48 anos é muito pouco na história para o socialismo, num mundo globo colonizado com o paradigma neoliberal e toda uma cultura excessivamente capitalista, que vem ao encontro de nossas tendências mais negativas que são típicas do capitalismo, como é o caso do egoísmo.


Falar de Cuba, falar de Fidel é falar de como vamos ajudar este país a reinventar o socialismo, depois da queda do Muro de Berlim, da União Soviética, depois dos caminhos muitos singulares que a China tem abraçado. O que se coloca para todos nós, é como reinventar o socialismo. No sentido de que o socialismo, antes de ser um projeto de desenvolvimento, tem que ser um projeto de humanidade, de civilização, de virtudes humanas. 

Creio que Fidel adiantou-se à história. Vai ser sempre uma pessoa que irá deixar o exemplo, como o Che, que deu a sua vida pelos mais pobres. Ele estava no poder, poderia ter ficado tranqüilo, mas abriu mão de todas as suas funções e privilégios, para de novo começar desde o zero como um homem clandestino, primeiro no Congo e depois na selva da Bolívia para servir à libertação da Bolívia e da América Latina.

Eu penso que Fidel criou uma sociedade socialista que se mantém, porque soube cultivar aqui valores muito originais. Por exemplo, a primeira vez que vim à Cuba, eu esperava encontrar em cada esquina um busto de Marx ou Lênin. E encontrei um senhor que tinha a cabeça raspada, com um bigode que eu não conhecia. 

Efetivamente, não o conhecia, porque vivo no Brasil e o Brasil nesse momento estava de costas para a América Latina e de frente para a Europa, EUA… O processo de latino americanização do Brasil estava recém começando. Então me dei conta que esta revolução era muito mais martiana que marxiana. Utilizou a teoria de Marx na construção de seu projeto socialista, mas o pensamento de José Martín tem muita mais raiz, é muito mais forte neste país que todas as teorias marxistas e leninistas. Isto para mim explica como Cuba pode resistir às pressões da globo colonização e do imperialismo. Porque não se criou aqui um modelo mimético do modelo patriarcal burguês.

Explico-me melhor. Eu acredito que um dos erros da revolução soviética foi mudar o sistema, sem mudar o modelo. O modelo soviético era um modelo czarista. As carruagens do czar foram substituídas pelos carros luxuosos do Kremlin. E a nomenclatura era como a corte. Então, lamentavelmente esta é uma tendência que existe na história, que quando um grupo chega ao poder, como o que aconteceu na Revolução Francesa e em outros lugares, reproduz o seu antecessor. Em Cuba não aconteceu isto. Cuba criou uma revolução original, que manteve inclusive a religiosidade do seu povo.
Aqui não houve repressão à religião. Há um respeito ao sincretismo religioso cubano que é muito semelhante com o que existe no Brasil, sobretudo na Bahia. Toda a veia poética, musical, humorística da cubanidade, tudo isso tem sido valorizado pela revolução. Isso explica porque apesar de todas as pressões e dificuldades, Cuba é um exemplo. Apesar de que hoje Cuba é uma ilha quádrupla: uma ilha geográfica, uma ilha por ser o único país socialista do Ocidente, uma ilhar por estar bloqueada pelos EUA e uma ilha por ter um modelo de sociedade que ao mesmo tempo é único e é solidário com todos os pobres do mundo. Cuba tem professores e médicos em mais de 40 países do mundo. Creio que isto cria um exemplo e uma esperança para todos nós que queremos construir um novo projeto civilizatório.


Qual a avaliação que você faz hoje de sua participação no governo, frente ao programa Fome Zero?

Para mim foi importante o trabalho no Fome Zero nos dois primeiros anos do governo Lula. Eu sou grato ao Lula pela honra desse convite. Mas o governo tem tomado rumos com os quais não estou de acordo, sobretudo na política econômica. O governo tem fundamentado a política econômica em um projeto neoliberal, de rigoroso ajuste fiscal e em contradição com os projetos sociais. O próprio Fome Zero começou a ser desfigurado, reduzido a um de seus programas, o programa Bolsa Família que hoje ajuda na sobrevivência de onze milhões de famílias miseráveis.
07 milhões saíram da miséria, mas este programa não tem uma porta de saída. No momento em que o governo deixar de dar o dinheiro às famílias, eles não vão produzir o sustento da própria vida. Por quê? Porque até agora o governo não teve a ousadia de cumprir uma das demandas históricas mais importantes do Brasil que é fazer a Reforma Agrária. Com um detalhe, somos o único país das três Américas que tem uma área cultivável de dimensões continentais.

Porque apesar de que o território do Canadá e dos Estados Unidos serem como o do Brasil, esses países não têm áreas cultiváveis como o Brasil. Inclusive uma área que não é cultivável, como é uma boa parte do Amazonas, é uma área de muita produção de riquezas. Pescado, frutas, vegetais, matérias primas da medicina. É um país privilegiado pela natureza. 
Eu costumo dizer que Deus quis inventar o Éden, o paraíso perdido no Brasil, por isso não nos deu nenhuma catástrofe natural. Nossa única catástrofe é a política, a classe política que temos. O programa “bolsa família”, no ano de 2006 deu 15 bilhões de reais para 11 milhões de pessoas e o “bolsa especulador” deu para 20 mil famílias o credores da dívida pública, 150 bilhões de reais. Então para mim não há futuro num país que beneficia dessa maneira a sua camada mais rica.

Às vezes esse tipo de programa reforça o clientelismo?
Sim, claro. Reforça o clientelismo e é um programa que responde aos projetos do Banco Mundial que diz que os pobres precisam ser tratados com políticas focalizadas, assistencialistas, mas nunca com políticas de mudança estrutural e de erradicação da miséria e da pobreza.

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