sexta-feira, novembro 9

O Concerto: uma catarse como a purificação das almas, provocada por um drama


‘O Concerto’ tem este mérito: nos tocar profundamente nos instigando a iniciar nossa própria jornada, onde o herói sou eu mesmo, e onde dentre tantas incertezas só é certo que o resultado será surpreendentemente maravilhoso, pois o que poderá haver de melhor do que me resgatar?

Assisto o filme e durante toda a projeção tenho a sensação de que estou sendo lançada de um lugar para outro, jogada em um espaço de angústia, de agonia! Entro em contato com as situações de tensão da minha própria vida onde tudo parecia dar errado, aqueles momentos em que pensava que iria sucumbir, ser engolida pelo tsunami de azar que se movia em minha direção!

Fico pensando em como um filme cujo título é “O Concerto” pode me deixar tão desconcertada! Como é possível um filme iniciar com música clássica, contar a história de uma orquestra fabulosa, terminar com uma apoteótica sinfonia, e ainda assim nos invadir com tamanha sensação de desencontro, traçando seu enredo em um gritante descompasso!

Foi com este desconforto que comecei a refletir sobre minha própria jornada em busca da minha harmonia interna, me conectando com meus acordes desarmoniosos, com minhas notas dissonantes, ou até mesmo destoantes. Fui conduzida a olhar para este lugar de confusão, de conflito e caos, a partir do qual é possível encontrar a ordem, refazer o cosmos, chegando a harmonia plena!

Dentre tantas análises belíssimas que este filme poderia inspirar, eu escolho neste momento pensar na ‘Jornada da Alma’ em busca de suas verdades profundas, em busca de integrar partes faltantes e perdidas ao longo da estrada, de forma a concatenar um todo cheio de sentido e significado, capaz de promover harmonia.

O Personagem principal deste filme, Andrei Filipov, representa bem o arquétipo do herói em sua jornada na busca de preencher vazios existenciais, encontrar sentido, e se descobrir como ser inteiro, integral e integrado.

O ponto de partida é o Trauma. No filme nosso personagem vive um momento de glória, onde seu maior sonho está se realizando. Ele e todo o grupo que dirige como maestro partilham a glória de um momento apoteótico, no qual a harmonia perfeita está se completando em uma apresentação ímpar. Mas ali, naquele lugar de êxtase, eles têm suas “asas cortadas”. Como Ícaro eles se entregam ao voo sem perceber os limites (naquele caso: as regras), e como aquele, eles acabam com suas asas derretidas.

Muitas vezes nos entregamos a um sonho, um projeto, um desejo, e o fazemos sem medir consequências, nos esquecendo das regras (representadas neste mito do Ícaro pelo sol, e no filme representadas pelo poder da ditadura política). Não nos atentarmos às regras vigentes custa um preço que às vezes pode ser alto demais! O maestro e todos os músicos da orquestra foram duramente punidos com o maior de todos os castigos: foram impedidos de tocar. Para um músico ter sua música silenciada equivale a ter a alma aprisionada. Este é o ponto máximo do filme, onde tudo começa: O Trauma.

Quando vivemos um grande trauma, ou uma experiência de profundo prazer, corremos o risco de ficar com a alma aprisionada naquele espaço/tempo, e assim a vida passa a ser uma eterna repetição de situações que nos remeterão sempre àquele experiência na qual estamos aprisionados.
O maestro e sua orquestra tinham este duplo motivo para estarem aprisionados: a lembrança do prazer e do trauma vividas em um mesmo espaço (o teatro) e tempo (o momento em que estavam tocando de forma ímpar).

Depois de ter sua batuta quebrada (símbolo do poder e do controle) Andrei e seus amigos foram renegados a uma experiência constante de miséria e humilhação.

Esta é a primeira grande reflexão que este filme nos proporciona e ela nos conduz às perguntas:
Em que momento da nossa vida nós estamos amarrados, quer pela experiência de prazer, que pela experiência de dor?
Que trecho da nossa história se repete inexoravelmente, gerando desconforto e limitando nosso crescimento?
Em que experiência está ancorada minha vida me impedindo de avançar em direção a novas descobertas?

Quando estamos assim, fixados em um momento do passado, nossa energia psíquica fica bloqueada, e por isso sempre vai faltar para novos investimentos, e por consequência temos o nascimento das doenças emocionais e psicossomáticas.
A abertura do filme é muito instigante, pois temos o maestro regendo sua orquestra, a até um determinado momento acreditamos de fato que é isto que está acontecendo, para depois ficarmos muito frustrados ao percebermos que ele é apenas o zelador do teatro.

Este é o primeiro aspecto de uma alma aprisionada: ela vive de ilusões.

Quando a realidade se torna demasiadamente doída, cruel ou ameaçadora, temos a tendência de nos proteger com mecanismos de defesa como os de fuga, negação, dentre outros, e desta forma criamos uma realidade paralela, que nos anestesia. De fato a sensação é de que a dor deixou de existir, ou se tornou ‘menos doída’, entretanto ela está apenas oculta pela fantasia. Reger de ‘faz de conta’ aquela orquestra, e ser o zelador do teatro enquanto imaginava que em algum momento teria novamente a oportunidade que lhe foi roubada, era a fantasia vivida por Andrei. Interessante que enquanto ele se entregava a esta ilusão, alienado de suas verdades, sua mulher enfrentava a vida com diretividade: ela contratava figurantes para eventos, não importa se o trabalho era para o governo que os renegara e do qual ela tinha raiva, ou se era para mafiosos que também não estavam em sua lista de bem-quistos. O que importava era que com este trabalho eles continuavam sobrevivendo e podiam até mesmo fazer planos, como por exemplo plantar sua horta com o dinheiro extra que receberiam de um evento.

Ela encarava a realidade como era, sem idealismo, sem falsos argumentos. Duramente ela tocava a vida e era aguerrida, corria atrás, brigava por seus direitos (como na cena em que briga para receber a quantia prometida por seu cliente, ou quando briga com Ivan para que este faça o que for preciso, mas consiga o dinheiro para levar a orquestra a Paris). E é justamente esta dose extra de realidade que quebra nossa própria fantasia no início do filme, quando percebemos que estávamos sendo enganados,  pois Andrei que parecia reger a orquestra era na verdade o faxineiro. Sua dura realidade é exposta quando seu celular toca com sua mulher ligando para lhe dizer que faltam figurantes para o próximo evento querendo que ele a ajude com esta responsabilidade.

Se o ponto de partida para a construção da neurose é o trauma, então o ponto de partida para a construção da saúde é o choque de realidade. Nada melhor do que o enfrentamento de nossa miséria, o contato direto como nossas mazelas, olhar diretamente para nossa vergonha, encarar a verdade ‘nua e crua’ de nossa vida ‘aqui e agora’... Neste encontro comigo mesma como estou abre-se o portal que pode me levar à superação, a reconstrução, às mudanças que farão verdadeira diferença! o Toque do celular de Andrei no teatro representa isso.

Neste ponto, quando ele encara a realidade, coisas começam a acontecer, e ele dá mostras de que está pronto para atravessar o ‘Portal’.

Após levar uma tremenda bronca Andrei fica sozinho fazendo hora extra, limpando a sala do diretor, agachado debaixo da mesa, de joelhos, o que representa seu total estado de humilhação. Mas aí mesmo, em uma cena que descreve o fundo do poço para um maestro tão talentoso e renomado (usar as mãos que eram para a leveza da batuta, para realizar o trabalho pesado de faxina no próprio teatro onde já fora aclamado), ele encontra sua grande oportunidade! Não mais a fantasia de uma oportunidade, mas uma possibilidade real de ‘dar a volta’ e ‘estar de volta’! Ele ouve o barulho do fax chegando e se atenta para ele. É literalmente uma mensagem vinda do alto: uma mensagem (o fax), vinda do alto (ele está em baixo da mesa e o fax então está posicionado acima de sua cabeça).

Muito oportuna a forma deste simbolismo ser inserido no filme, pois a oportunidade geralmente chega até nós através de um anuncio, que vem do alto, de um lugar para além de nós mesmos (vem do Universo, de Deus, de Alguém que nos ama e cuida de nós, do destino... Não importa as diferenças de nossas crenças, o ser humano como ser transcendente que é sempre esperará do ‘alto’ as respostas, o aparecimento de situações auspiciosas, de oportunidades, de possibilidades que estão para além dele próprio!).

Entretanto não basta que a mensagem chegue, ela precisa ser percebida como uma oportunidade. É preciso percepção aguçada para perceber a mensagem, receptividade para compreende-la e audácia para aceitar o desafio e a oportunidade que ela anuncia, e Andrei teve tudo isso!

Jung ressalta o papel da sincronicidade como uma voz do Self nos encaminhando para a jornada da realização onde o ser pode encontrar a plenitude. Muitas vezes perdemos oportunidades por não nos atentar aos eventos emparelhados pela sincronicidade debaixo de nossos olhos! É importante saber ouvir a voz do Self sempre, mesmo quando ela parece indicar um caminho absurdamente maluco: Andrei queria reunir sua antiga equipe de músicos, contratar como agente seu arque-inimigo, fingir serem o verdadeiro Bolshoi, viajar para a França e se apresentar no Châtelet Theater em Paris. Só isso! Qual foi a proposta absurda que seu Self já lhe fez? Você foi louco suficiente para aceitá-la, ou permaneceu na média, na mesma, medíocre?

Nesta jorna de busca se encontra também a jovem violinista Anne-Marie Jacquet, que tocava divinamente sonhando encontrar o olhar de seus pais na música, mas perdida de si mesma sem saber, pois lhe fora negada a verdade de sua origem! Ela também ouviu o chamado do seu Self e aceitou o desafio louco de tocar uma sinfonia da qual tinha medo (Tchaikovsky), para a qual não se sentia totalmente preparada, mesmo tendo que fazê-lo ao lado de um maestro e uma orquestra que mais parecia uma piada ou um pesadelo! Se ela não tivesse aceitado este convite não teria tido a oportunidade de encontrar sua essência e reconhecer suas verdadeiras raízes.

Ela não reconhecia sua verdadeira nacionalidade, nem a verdade sobre seus pais, ou mesmo a verdade de como fora tirada deles. Sua mãe (Léa) era a solista de violino daquela orquestra no passado, e dentre todos os músicos agredidos pelo golpe da ditadura política naquela fatídica noite, ela e seu marido foram os que sofreram a pena mais dura. Ela foi desapropriada de seu violino, de sua música, de sua cidade, e foi exilada na gélida Sibéria onde morreu em apenas um ano. Para salvar sua filha de um destino pior precisou abrir mão da mesma, sendo o bebê entregue a alguém que clandestinamente a levou para a França, conferindo-lhe uma nova identidade, e privando-a de sua verdadeira história.

Ao sentir o toque do Self, intuindo ser importante tocar naquele concerto, ao lado daquele maestro, mesmo sem saber o porquê, ela diz para sua empresária: “Diga-lhes que aceito qualquer condição”, e esta é uma frase carregada de muita coragem! Você também está disposto a aceitar qualquer condição para iniciar sua jornada em direção a suas verdades profundas? Em direção ao seu ‘eu’ verdadeiro? Em direção a cura da sua alma?
O caminho em direção a uma grande resolução, ou superação pode ser chamada de ‘Jornada do Herói’. Ela é sempre uma saga, com muitos desafios, muita superação, muitos medos e surpresas, mas com um final que vai fazer valer a pena todos os esforços empreendidos!

A saga de Andrei começa quando ele comunica a Sacha, seu amigo mais chegado, sua intenção e o convoca para ser seu auxiliador nesta jornada! É bom lembrar que todo herói precisa de alguém que o auxilie em seu caminho. Quem é seu parceiro fiel com quem poderá contar nos momentos de dificuldades, nas horas em que deixar de acreditar, quando perder suas forças, quando tudo parecer sem sentido? No filme Sacha faz muito bem este papel, ele compra a ideia de Andrei e está o tempo todo ao lado dele nesta grande aventura. Ele o incentiva, o reanima, o resgata, o chama para a realidade, vai ao seu encontro quando está perdido, e o auxilia nas horas mais difíceis, continuando a acreditar, mesmo quando tudo parece não fazer mais sentido. Sua importante participação ganha maior destaque quando vai conversar com Anne-Marie para convencê-la a tocar naquela noite, e quando já não haviam argumentos que pudessem dissuadi-la, sua sensibilidade e sabedoria a tocam de forma a mudar o rumo da história de todos (“Temos medo da verdade. Nada é claro. Palavras são traiçoeiras, só a música é bela, e ela é prisioneira dentro de nós!”). O verdadeiro amigo é realmente aquele que acredita no sonho do outro e não desiste jamais, mesmo que o próprio sonhador esteja desfalecido. Oxalá encontremos amigos assim para nos apoiar em nossa jornada em direção a realização de nossos sonhos e projetos!

Após convencer o amigo seu segundo passo é intrigante, pois ele recorre a seu maior inimigo para ajudá-lo: Ivan Gavrilov. Penso que esta é também uma lição interessante, pois Andei foi capaz de passar por cima de seu orgulho ferido, de sua raiva e de sua dor, para reconhecer que aquele que homem era a pessoa mais capacitada para executar adequadamente a negociação que seria o passaporte para a redenção da sua alma. Muitas vezes os ressentimentos nos impedem de avançar e nos fazem perder importantes oportunidades. Ele superou esse estágio, e fez do causador de sua desgraça o possibilitador do resgate de sua dignidade. 

Este investimento foi válido e isto se comprova no fim do filme quando Ivan, que estava de saída para participar de uma reunião política de apologia ao comunismo (seu verdadeiro motivador para ter aceito aquela aventura), desistiu de seu intento para ajudar Andrei a cumprir sua missão, enganando e prendendo o verdadeiro diretor do Bolshoi, que havia descoberto a farsa e estava para desmascarar a falsa orquestra. Graças a presença do antigo inimigo o novo inimigo foi impedido, e o projeto foi salvo! Esta experiência foi uma possibilidade de redenção também para Ivan que em nome de uma filosofia de vida e de uma devoção a um regime político, viveu alienado e cometeu muitos erros. Agora ele aceitava a oportunidade de se aliar a uma nova verdade, uma missão mais digna, chegando a apelar para Deus, e checando em meio ao imenso desejo de que tudo desse certo, se este Ser realmente existia. Ao final ele se entregou a algo mais, além de sua sua crença materialista! E assim pode compreender o verdadeiro sentido do comunismo: “um mundo onde cada um traz o que tem para formar a harmonia”.

Voltando à Jornada de Andei temos o terceiro passo:  o Resgate. Ele sai com Sacha visitando um a um dos antigos músicos que compunham a magnifica orquestra Bolshoi, todos perdidos, maltratados, largados pela mãe Rússia, despidos de sua verdadeira identidade de músico, desapropriados de sua alma de artista, e submetidos ao submundo da miséria financeira e emocional. Novamente o filme nos presenteia com outro rico simbolismo: a ambulância. Ela é o veículo que busca o doente, aquele que necessita de cuidados emergentes, aquele que corre risco de se perder. Andrei é levado a cada visita por Sacha em sua ambulância (por ser este o carro com o qual trabalha), e um a um os ‘doentes’ vão sendo encontrados: um velho judeu comerciante; alguém que trabalha colocando música em filmes pornográficos;  carregadores de mudança; feirantes; auxiliar de museu; taxista; chefe cigano. Um a um eles foram sendo encontrados e convidados a resgatar o que haviam sido obrigados a abandonar para trás: sua música e seu orgulho!  De todos os encontrados apenas um se negou a aceitar o convite, e expulsou Andrei de sua casa. Realmente algumas pessoas não estão prontas para rever feridas do passado!
Este terceiro passo de Andrei também nos ensina que em nossa jornada é necessário resgatar os pedaços esfacelados e largados no passado. Cada músico da orquestra tinha um significado especial, e cada história interrompida era um fantasma atormentando a alma do maestro, em especial a história de dor da solista que ao final pode ser resgatada através da inclusão de sua filha Anne-Marie nesta saga.

Cada pedaço quebrado e abandonado de nosso passado, renegado ao esquecimento, perdido em nosso baú nunca remexido, fica ali, na escuridão, se anunciando para nossa consciência como fantasmas amedrontadores! É besteira querer ignorar, pois a energia do que foi esfacelado é autônoma, teimosa, tinhosa, incansável! É melhor ir atrás e resgatar cada pedaço perdido pois só assim poderemos chegar a buscar um todo harmonioso.

O passado bem guardado e escondido também é representado no filme pela caixa onde Andrei guarda notas de jornal sobre seus momentos de glória, sua batuta quebrada, e informações sobre uma jovem violinista que tem extrema relevância no desenrolar da trama. Caminhar em direção ao passado é uma descida em nosso porão interior. A jornada do herói inclui sempre a descida ao inferno, sendo esta a principal etapa do grande resgate. Descer ao inferno é sempre uma experiência amedrontadora, perigosa, pois ele é com certeza o lugar onde entraremos em contato com o pior, com o nosso pior. Por isso fugimos deste contato, evitamos até mesmo olhar para a porta de acesso a estes espaços ocultos. Entretanto é preciso saber que o verdadeiro herói só passa a existir de fato quando sobe das entranhas do seu ser, pois esta aprendizagem é geradora do sucesso! Antes somos apenas potencial, depois desta experiência poderemos nos tornar aquilo que nascemos para ser!
Buscar os antigos músicos foi um grande desafio, mas tornar estes pedaços um todo harmonioso era algo muito mais complexo!

Quando o herói se lança em sua jornada é preciso ter consciência de que nada será fácil! E o filme mostra uma série de dificuldades, algumas até cômicas, outras desesperadoras, obstáculos quase intransponíveis: precisam reunir uma orquestra de músicos perdidos no tempo e no espaço; não têm dinheiro para pagar a viagem e para conseguirem é preciso aceitar na orquestra um músico que não sabe tocar; ninguém tem passaporte e o prazo legal para retirá-lo não é suficiente; a maioria dos músicos não tem mais seu instrumento e ninguém tem roupa apropriada para a apresentação e naturalmente não tem dinheiro para comprar; o ônibus que os levaria ao aeroporto não vem buscá-los e todos precisam caminhar 7 quilômetros carregando sua bagagem e instrumentos;  os músicos desaparecem em Paris e não aparecem para os ensaios tampouco tem intenção de aparecer para a apresentação; a solista Anne-Marie desiste de se apresentar; Andrei também desiste e se embebeda no bar; a apresentação quase foi impedida pelo verdadeiro diretor do Bolshoi que aparece no teatro; o concerto já vai começar, a batuta do maestro já está erguida e dois músicos ainda não chegaram; um maestro que não rege há 30 anos, uma orquestra que não toca há 30 anos, e uma solista de violino que não domina aquela peça musical, todos juntos em um concerto que não foi ensaiado nenhuma vez; eles enfim iniciam a apresentação mas estão descompassados e desafinados...

Todo esse descompasso imposto pelos incontáveis problemas que teimam em aparecer vão gerando a sensação de que a qualquer momento tudo vai desmoronar! E esta angústia ininterrupta faz com que Andrei diga algo que tenho certeza, também já dissemos em algum momento de nossas vidas: “Me arrependo de ter começado isso” (quando ainda estava em seu país) “Por que fui inventar isso? É um pesadelo!” (quando já estava em Paris dentro do metrô).

Nosso Ego tenta por vezes nos proteger deste enfrentamento, pois sabe o alto preço a ser pago durante a viagem. Guylène, a empresária e cuidadora de Anne-Marie interpreta bem este papel do Ego, quando chega para Andei e pede pra que ele não fale nada sobre o passado, que deixe tudo como está, afinal a moça já está com tudo organizado em sua vida, tem sucesso, tem dinheiro, tem prestígio, não há porque mexer no que está tão bem organizado! O Ego tenta garantir a preservação do statu quo. Já no final do filme temos representado o rebaixamento desta defesa do Ego, a permissão, quando Guylène vai embora e deixa um bilhete incentivando Anne-Marie a tocar naquela noite. Somente quando os mecanismos de defesa perdem sua energia, e o Ego cede à força do Self, o indivíduo pode fazer o verdadeiro mergulho em direção às verdades de sua Alma!

Muitos serão os obstáculos ao longo da ‘Jornada da Alma’ em busca de resgatar algo perdido; de ressignificar o passado que gera dor; em direção à completude do ser; à procura de seu verdadeiro sentido existencial! É preciso ter presente que eles existem e que serão superados, um de cada vez, cada um a seu tempo, e que paciência é uma virtude indispensável neste caso. Quando Andrei está muito ansioso cobrando do cigano (seu provedor) que algo ocorra mais rapidamente este responde: “O sol se levanta todas as manhãs e jamais a noite!”. Esta é uma importante lição a ser aprendida pelo herói em sua jornada!

Mas quem está pronto para viver assim, na corda bamba? Queremos sempre garantias, segurança, estabilidade, controle... mas estas palavras são antagônicas a tudo o que poderemos encontrar quando iniciarmos a Jornada da nossa Alma! O herói deve estar consciente de que a única certeza de sua jornada é a falta desta! Ele só pode estar seguro de seu desejo de perseverar até o fim! Não há garantias, nem se deve esperar facilidades, entretanto todo aquele que se lança verdadeiramente nesta busca, percebe ao final que tudo, até mesmo o desarmonioso e desesperador caos, cooperou para um final harmonioso, onde o apogeu pode ser sentido como algo que estava ali, pronto para ser gozado!

Andrei, nosso herói que corajosamente caminha em busca de resgatar sua dignidade e a dignidade dos seus liderados, rege este grupo em uma verdadeira odisseia, cujo final catártico garante uma apoteose de encher nossos olhos, ouvidos e fazer derramar nossa alma!

Ao tocar, se harmonizando com os acordes e com suas lembranças, Andrei, Anne-Marie, Sacha e todos os outros se encontraram em um só propósito e se alinharam com sua história, entrando em contato com sua verdade, suas raízes, onde tudo ‘faz sentido’, e ‘preenche de sentido’ o vazio existencial promovido pelo sofrimento de outrora!

Como confessei, iniciei o filme incomodada por uma forte angústia, segui com uma sensação constante de tensão, mas terminei impactada por minha própria catarse. Isso me faz lembrar Aristóteles que define catarse como a purificação das almas por meio de uma descarga emocional provocada por um drama. 

Por: Francisca Araújo apud Márcia Christovam

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